UM OLHAR NADA-CLICHÊ SOBRE O CONSUMO

Para compreender a complexidade deste fenômeno social que é o consumo contemporâneo, entendendo como ele contribui de forma decisiva para estimular até mesmo a formação de nossa identidade, é necessário percorrermos algumas correntes teóricas de forma interdisciplinar. Esse esforço tem como finalidade dimensionar a privilegiada posição reflexiva que a relação comunicação-consumo ocupa hoje. Iremos analisar também como um olhar sobre essa interface é de destacada importância para se analisar os processos de formação de nossas subjetividades e avaliar criticamente nossos modos de organização sociocultural.

As práticas do consumo, que começaram a protagonizar de forma mais incisiva o nosso cotidiano no século XIX, também eram evidenciadas nesse momento como uma representação estética da vida urbana (SIMMEL, 1995). O consumo não era algo individual e subjetivo, mas coletivo e social. Percebia-se um sujeito que era (e ainda é) regulado por uma identidade socialmente estabelecida e economicamente regulada (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004). Quando Baccega (2012, p.251) nos diz que o “consumidor não é aquele que consome apenas porque a propaganda manda consumir […] consumo não é apenas consumismo, ele é indispensável à existência de qualquer sociedade”, vemos que a autora já marca seu olhar para essa questão.

Diversos pensadores contemporâneos que estudam o consumo, em grande parte, associam esse fenômeno com a construção da identidade do sujeito. A fala do antropólogo Everardo Rocha é muito esclarecedora nesse sentido, quando diz que:

“o consumo possui uma óbvia presença tanto ideológica quanto prática no mundo em que vivemos, pois é um fato social que atravessa a cena contemporânea de forma inapelável. Ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso imaginário. O consumo assume lugar primordial como estruturador dos valores e práticas que regulam relações sociais, que constroem identidades e definem mapas culturais.” (EVERARDO ROCHA, 2005, p. 124)

Ao analisar esse fenômeno do consumo como prática cultural central no contemporâneo, nota-se que diversos indivíduos entendem o consumo não apenas como a apropriação de um novo bem, mas sim o ingresso num imaginário simbólico e que tornam mais viável seu acesso a bens globalizados, conforme exalta Canclini (2008) em sua clássica obra Consumidores e Cidadãos.

O consumo não é uma prática exclusiva da sociedade contemporânea. McCracken (1990) descreveu o ‘consumer boom’ como fenômeno já na Inglaterra do século XVI, analisando o seu impacto na corte elizabethiana. O autor chama a atenção para uma mudança de padrão de consumo na nobreza britânica: saía-se de um padrão baseado na “pátina do tempo” para um padrão baseado em “fashion”. A centralidade do consumo merece estar presente nesta reflexão, pois a caracterização da sociedade de consumo em que vivemos é fundamental ao estudos de nossa contemporaneidade. Nessa mirada investigativa, percebe-se que “é preciso ir além da visão restrita sobre o consumidor apenas alienado, submetido, sem reação, aos interesses dominantes, totalmente cooptado pelo ‘consumismo’, sem condições de decisão” (BACCEGA; CASTRO, 2009). Concentra-se o olhar nesse texto para outras concepções, em total consonância com a dinâmica da realidade contemporânea. Nesse sentido, Alonso (2006) traz com precisão seu olhar para essa perspectiva do consumo:

“(nós) nos encontramos com uma mescla realista de manipulação e liberdade de compras, de impulso e reflexão, de comportamento condicionado e uso social dos objetos e símbolos da sociedade de consumo. E ao fazer do consumidor não um ser isolado e desconectado do resto de seus contextos sociais, e sim portador de percepções, representações e valores que se integram e completam com o resto de seus âmbitos e esferas de atividade, passamos a perceber o processo de consumo como um conjunto de comportamentos que recolhem e ampliam, no âmbito privado dos estilos de vida, as mudanças culturais da sociedade em seu conjunto”. (LUIS ALONSO, 2006, p.99)

Deve-se pensar o consumo como articulador privilegiado das dinâmicas atuais e, sobretudo, como “um sistema cultural importantíssimo e um dos fenômenos mais marcantes na vida social do nosso tempo […] ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso imaginário” (ROCHA, 2009, p.124). Ainda para Rocha (2008), deve-se definir o consumo como uma questão de cultura, algo complexo e, no esforço para construir sua teoria, é preciso refazer essa indagação fundamental: por que um fenômeno de imensa visibilidade, atuação e constância na vida social do nosso tempo recentemente tem sido objeto de uma reflexão mais ampla? O consumo implica transmissão de mensagens intencionais (ou não) que podem ser lidas socialmente. Os bens que possuímos ou portamos são indicativos de relações sociais ou, na feliz expressão de Douglas e Isherwood (2004), “constroem muros ou pontes” entre o um e os outros. Baccega (2008) também pensa sobre o consumo como um formador de identidade. Segundo a decana do PPGCOM ESPM-SP, é por meio da comunicação e do consumo, que ajustamos, reparamos e reconfiguramos nossos modos de ser e de estar no mundo. Em suas palavras:

“nos templos de consumo podemos observar também toda a complexidade das distinções sociais e dos gostos […] e observar ainda identidades que se vão transformando, em tempo curto, em cada sujeito consumidor. A identidade passou a ser móvel, está sempre em movimento. Todos temos várias identidades. Somos branco ou negro, temos escolaridade maior ou menor, somos pai ou mãe ou filho, enfim, membros de uma família, orgulhamo-nos ou temos vergonha de nossas origens, gostamos de samba ou rock, usamos seios grandes, siliconados ou não, atendemos aos chamamentos das revistas de moda ou não etc. etc. etc. Estamos sempre em mutação. Ocorre que, entre todas as identidades possíveis em determinada fase, uma delas é a que preferimos e queremos mostrar. Para isso, fazemos grande esforço: queremos ser identificados como aquele que tem escolaridade elevada, por exemplo. Ou como mãe zelosa. Ou queremos que vejam em nós determinado traço do que está sendo considerado belo no corpo da mulher. Fazemos grandes esforços para o reconhecimento “público” dessa identidade escolhida. E essa exposição se garante sobretudo com as escolhas do que se consome. O consumo serve, portanto, como alavanca do desfile de identidades cambiáveis do sujeito. A identidade não é mais permanente, dada pela família, pelo território. O sujeito a reconstrói permanentemente, sempre levando em consideração o traço de identidade que ele poderá “vender mais caro”, pois é o que está sendo valorizado naquele momento.” (MARIA APARECIDA BACCEGA, 2008, p. 23)

A intenção desse texto não é defender que o fenômeno do consumo seja uma prática do contemporâneo, apenas, mas que ele ganha destaque a partir deste período, passando a caracterizar nossa era como a era do consumo (ALONSO, 2006).

Com a crescente urbanização, principalmente na Europa no final do século XIX e começo do XX, surgiam novos lugares destinados ao consumo de mercadorias. A cada dia eram instalados tapumes, para esconder as obras de remodelação da arquitetura da cidade de Paris, por exemplo, e neles eram colados cartazes anunciando os mais diversos produtos, desde chocolates, até lenços de seda, desde tabaco até a inauguração de uma nova peça de teatro. O consumo passava a funcionar como um tipo de educação, pois era daquela forma que os cidadãos se informavam das coisas, das mercadorias, das novidades. Nesse sentido, o consumo passa a ter um papel central enquanto processo de comunicação, cujos significados são construídos na interpretação, juntamente com a figura do “outro”.

Outra perspectiva teórica que corrobora com o olhar que se pretende lançar nesse texto é pensar o consumo um definidor de estilos de vida na contemporaneidade. De acordo com Lívia Barbosa (2006), consumo é “um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentidos e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea” (BARBOSA, 2006, p. 26). Há ainda outras linhagens teóricas que o vêem o consumo com um teor mais problemático. Por exemplo, o pensador polonês Zigmundt Bauman, que também dedicou boa parte de seu percurso intelectual no entendimento do consumo e sua íntima relação com a formação de identidade, e afirmou que:

“Aos consumidores lhes move a necessidade de ‘converter-se eles mesmos em produtos’ – reconstruir-se a si mesmos para ser produtos atrativos. […] Forçados a encontrar um nicho no mercado para os valores que possuem ou esperam desenvolver, devem seguir com atenção as oscilações de oferta e demanda e não perder o pé nas tendências dos mercados, uma tarefa nada invejável e que em geral é ‘esgotadora’, dada a conhecida volatilidade desse mercado.” (ZYMUNDT BAUMAN, 2007, p.151)

Nesse texto, pretendeu-se abordar o consumo como um olhar mais amplo e menos reducionista. Entende-se o consumo aqui como uma apropriação social, simbólica e sinérgica que se dá entre pessoas e bens e, sem dúvida, como uma alavanca fundamental na construção de identidade de sujeitos. Entendemos que a própria noção da identidade não pode ser dissociada da comunicação e do consumo na contemporaneidade, uma vez que definimos quem somos através do consumo, conforme argumenta Everardo Rocha (2005) quando diz que: “o consumo é o exercício de um sistema de classificação do mundo que nos cerca a partir de si mesmo e, assim como é próprio dos códigos, pode ser sempre inclusivo. Neste caso, inclusivo em pelo menos dois sentidos. De um lado, inclusivo de novos produtos e serviços que a ele se agregam e são por ele articulados aos demais. De outro, inclusivo de identidades e relações sociais que são elaboradas, em larga medida na nossa vida cotidiana, com base nele.” (ROCHA, 2005, p. 129). Assim, na tão dinâmica esfera da comunicação e do consumo, os indivíduos podem construir suas próprias micronarrativas, seus próprios modos de apresentação de si mesmo, em um processo que é altamente comunicacional, reflexivo e que passa necessariamente pelas escolhas que são feitas (GIDDENS, 1992).

Fonte: Administradores

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